A necessária e inevitável reforma previdenciária.
Data: 28/02/2020
Autor: Martina Catini Trombeta
Quando se analisa o cenário mundial, constata-se que a questão “idade mínima” para a aposentadoria está resolvida em boa parte dos países desenvolvidos, pois com o aumento da expectativa de vida não há como manter o padrão anteriormente estabelecido sem que haja impactos na economia. O aumento da idade para a aposentadoria não é uma causa, mas uma consequência natural da longevidade.
A idade mínima da aposentadoria básica na Dinamarca progredirá de 65 anos para 67 anos entre os anos de 2024 e 2027. Após esse período, estudos periódicos irão avaliar a necessidade de se estabelecer ou não um novo indicador. Nos Estados Unidos, conforme dados da administração de seguridade social do país, até 2014 a idade para aposentadoria, para quem nasceu em meados da década de 1950, era de 66 anos (homens ou mulheres). No ano de 2015, implementou-se uma tabela progressiva que estende a idade mínima para 67 anos de idade. Há a possiblidade de o trabalhador americano antecipar a aposentadoria aos 62 anos, mas com desconto do valor a ser recebido. Ou adiar até completar 70 anos, o que representa um aumento no benefício. O Japão é o campeão mundial da longevidade, com uma expectativa de vida de 84 anos. A idade mínima para a aposentadoria de homens e
mulheres é de 65 anos, e para que recebam o valor integral do benefício é necessário ter contribuído por 40 anos. O projeto original do governo previa a implementação do sistema de capitalização previdenciário e não o de repartição simples vigente. Para diferenciar um sistema do outro, é preciso uma breve explicação: o regime de repartição simples tem por fundamento a solidariedade entre os indivíduos e um pacto entre as gerações, também chamado de “pacto intergeracional”.
No sistema da repartição, os trabalhadores que integram a população economicamente ativa (pea) contribuem para o custeio dos benefícios daqueles que já estão no grupo da população economicamente inativa (pei). Basicamente significa dizer que quem está trabalhando sustenta quem já se aposentou. O regime de capitalização opõe-se à ideia de pacto intergeracional e cada indivíduo ca responsável pelo custeio de seu benefício. Consequentemente, existe a ideia de acumulação. Na capitalização, o valor do benefício dependerá diretamente do quanto o contribuinte aportou desde o início em seu fundo, e a gerência desse valor no mercado permitirá ao segurado que, ao final, haja quantia su ciente para custear sua aposentadoria. No cenário mundial, temos como exemplos atuais de sistema de repartição a França e o Brasil. E como exemplo do sistema de capitalização, o Chile. Em alguns países nórdicos (Suécia e Noruega) há um regime híbrido denominado “contas virtuais”. De fato, cada país tem suas nuances e particularidades econômicas, financeiras, políticas e jurídicas que influenciam na tomada da decisão Em uma análise geral, verifica-se que o sistema de capitalização fracassou na maioria dos países que o adotaram. A partir de 1981, 30 países privatizaram total ou parcialmente seus sistemas previdenciários, sendo que 18 países já voltaram atrás, retornando total ou parcialmente ao sistema de repartição. Nenhum país capitalista desenvolvido como os Estados Unidos e os países da Europa ocidental aderiram à capitalização.
A reforma da previdência social no Brasil consiste em uma reestruturação do sistema até então vigente, e implementará medidas que alteram substancialmente a legislação previdenciária do país. Dentro do regime geral de previdência, o sistema previdenciário abarca os trabalha- dores urbanos contribuintes individuais, segurados empregados, contribuintes facultativos e trabalhadores rurais. A previdência social é fruto de um processo histórico de luta e materialização dos direitos fundamentais. Não há como negar que o aumento da expectativa de vida traz a indiscutível necessidade da reforma, o que exige ajustes no sistema para que se sustente em um cenário econômico e político.
No que se refere ao contexto da pec previdenciária, o que se propõe é uma reforma ampla, o que claramente exigirá uma cota de sacrifício de todos (cidadãos, empresas,
entes públicos, entes políticos e servidores do sistema judiciário). Atribuir a culpa dos altos gastos com a previdência social às aposentadorias rurais e benefícios assistenciais por si só é um erro. Grande parte dos gastos provém da disparidade entre os benefícios do regime geral de previdência social e do regime próprio. Neste contexto, e diante da perspectiva de que os gastos com previdência aumentem, a omissão do governo em promover a reforma prejudicaria os investimentos em educação, saúde e segurança pública.
Evidente que a pec da previdência não é uma panaceia, um remédio para todos os males. Ainda percorreremos um longo trajeto e seus reflexos serão frequentemente discutidos.
É importante que busquemos a correção de eventuais injustiças e distorções, sem ceder a interesses predominantemente corporativistas ou de grupos com maior poder de influência, em prejuízo da população. A ordem social deve sempre ter como objetivo o bem-estar e a justiça social (cap. do art. 193 da cf). Não se pode perder de vista os objetivos fundamentais da República, no que trata da “ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o medo de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, por meio da “redução das desigualdades regionais e sociais” (art.170, vii da cf). A previdência social tornou-se responsável pela maior política de distribuição de renda do país, proporcionando a garantia da qualidade de vida aos trabalhadores. É ela um dos principais fatores de dinamização da economia, da diminuição da pobreza e da promoção de justiça social. A inevitabilidade da reforma previdenciária traz a enorme responsabilidade da preservação dos valores do nosso estado democrático de direito, materializados em forma de princípios constitucionais fundamentais e sociais. A seguridade social é um dos institutos previstos na Constituição Federal para a consolidação dos direitos sociais e fundamentais dos cidadãos, o qual atua sob a regência de um conjunto de princípios, que buscam a proteção social dos indivíduos contra contingências que os impeçam de prover as suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias. Sérgio Pinto Martins define a seguridade social como sendo o “conjunto de princípios, de regras e de instituições, destinado a estabelecer um sistema de proteção social aos indivíduos contra contingências que os impeçam de prover suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, visando assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.
A Constituição Federal (art. 194, cap.) define seguridade social como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Assim, pode-se afirmar que é um sistema de proteção social que abrange os três programas sociais de maior relevância A previdência social, em especial, é o segmento da seguridade social que depende de custeio direto para a população: a previdência social, a assistência social e a saúde. O dever constitucional imposto aos poderes públicos e à sociedade compreende um conjunto de ações integradas de iniciativa dos poderes públicos e da própria sociedade, que abarcam a previdência, assistência e a saúde. A previdência social, em especial, é o segmento da seguridade social que depende de custeio direto para que se tenha acesso. Para a previdência social é imprescindível que haja contribuição dos segurados, como requisito de garantia de proteção quando ocorrer a contingência social. Os programas assistenciais como o benefício de prestação continuada, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (loas), são geridos pelo inss, porém custeados pela União (derivam de assistência social, e não de previdência). O que está em jogo na reforma previdenciária são os recursos oriundos das contribuições sociais, que representam bilhões de reais destinados à saúde (dentro do sistema de vinculação de receitas). Se aprovadas pelo Senado, as novas regras, mais rígidas, terão como principais pontos:
– Pensão por morte
Altera-se o valor do benefício. A partir do falecimento do aposentado, é gerada uma cota familiar de 50% do benefício que ele recebia aos seus dependentes, esse valor terá o acréscimo de 10% por cada dependente até chegar no valor máximo de 100%. Caso o falecimento ocorra com segurado em atividade, a lei passará a considerar 60% da média dos salários, com 2% a mais para cada ano de contribuição que exceder 15 anos (mulheres) e 20 anos (homem). Quando o dependente for portador de necessidades es- peciais, receberá a totalidade do benefício.
– Bene cio de prestação continuada (bpc/loas)
A proposta inicial falava em alterações do valor do be- ne cio de acordo com faixas etárias, o que implicaria valores abaixo do salário mínimo. Mas as mudanças sugeridas pelo governo de criar um benefício em fases foram excluídas na tramitação. As regras mantiveram-se, de forma que continua fazendo jus ao benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, as pessoas com de ciência e idosos a partir dos 65 anos.
– Aposentadoria por idade rural
Os trabalhadores rurais também serão afetados: a idade mínima será de 60 anos, tanto para homens quanto para mulheres. Outra mudança relevante é que será necessário contribuir por 20 anos. Isso significa que apenas a comprovação da atividade rural não será mais su ciente para garantir o benefício. Historicamente, os trabalhadores rurais não contribuíam para o sistema previdenciário, e não é incomum a necessidade de prova testemunhal na Justiça Federal para comprovar a atividade exercida em datas longínquas para que o período seja computado na aposentadoria como carência. O tema continuará sendo recorrente nas varas federais para o reconhecimento dos períodos pretéritos, o que indiscutivelmente trará conflitos jurídicos, e os tribunais terão que se posicionar para não impedir o trabalhador rural a receber o que lhe é de direito.
– Regras de transição
Para quem já trabalha e contribui com o inss, haverá 5 para o trabalhador do setor privado e 2 para o servidor público. A escolha entre elas vai depender do per l do contribuinte. Pedágio de 50%: Essa regra valerá para mulheres a partir de 57 anos e homens a partir dos 60, e que estejam há dois anos de preencher o requisito de tempo de contribuição (mulheres a partir de 28 anos, e homens a partir de 33 anos de contribuição). Com isso, poderão optar pelo benefício com as regras atuais de cálculo: 80% das melhores contribuições de julho de 1994 até hoje, multiplicado pelo fator previdenciário. Pedágio de 100%: Essa regra valerá para quem ainda precisa cumprir de três a cinco anos para se aposentar, tendo que cumprir o mesmo tempo que falta (exemplo, se faltam 3 anos, o segurado terá que cumprir 6 anos). Para essa regra exige-se a idade mínima de 57 anos para mulheres, e 60 para homens. Idade mínima progressiva: Essa regra vale para quem está próximo de completar a idade mínima exigida pelas novas regras da reforma, porém estava acima de cinco anos de distância de completar o tempo mínimo de contribuição. Na nova previdência, a idade mínima é de 56 anos para as mulheres, e 61 anos para os homens. Com acréscimo progressivo a cada seis meses por ano, até que atinja 62 anos para as mulheres em 2031, e 65 anos para os homens em 2027. Assemelha-se com a somatória atual de pontos (86/96) – idade somada ao tempo de contribuição. No caso das mulheres, a soma sobe um ponto a partir de 2020, até chegarem 100 pontos no ano de 2033. E para os homens, a soma atingirá 105 pontos em 2028.
Aposentadoria por idade: A aposentadoria por idade já existia no sistema brasileiro, as mulheres, que hoje se aposentam com 60 anos, terão a idade mínima elevada para 62 anos, de forma progressiva, com o acréscimo de seis meses por ano a partir de 2020, até chegar aos 62 anos em 2023. No caso dos homens, não haverá mudanças. Alíquotas: Hoje, trabalha- dores com carteira assinada já pagam alíquotas de acordo com a faixa salarial limitados ao teto do inss (8%, 9% e 11%). A reforma trouxe a progressividade por faixa salarial, e as alíquotas agora vão de 7,5% a 14% dependendo do salário, mas a limitação ao teto do inss permanece. Os servidores públicos seguirão a mesma tabela, porém não estarão sujeitos ao teto, e as alíquotas vão até 22%.
Martina Catini Trombeta – Advogada especialista em Direito Previdenciário; Especialista em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra; Graduada na Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP